Ver e ser visto

Vale muito a pena assistir ao documentário “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, que mostra 19 pessoas com deficiência visual – da miopia à cegueira – falando sobre o ato de olhar, a visão e sobre o que é visto, compreendido. Diferentes deficiências, que ao mesmo tempo limitam e transcendem a percepção e visão de mundo, assim como possibilitam novas formas de ser.  Ou seja, coloca em questão como o indivíduo se constitui à partir da relação entre ver e ser visto.  

           O objetivo aqui não é falar sobre o documentário, que pela sua beleza e sensibilidade, permite infinitas discussões em diversas áreas do conhecimento, mas sim trazer um recorte e um ponto de vista à partir da psicologia. Participam do documentário vários intelectuais, alguns bastante famosos como José Saramago e Oliver Sacks, mas o depoimento de Marjut Rimminem, cineasta, em especial problematiza o processo de subjetivação através do olhar.

           Marjut nasceu estrábica, e descreve a forma como sua mãe a olhava, sempre triste e deprimida, como se ela fosse um fracasso, o que a fez buscar algo especial, algo que ninguém tinha ou já tivesse feito. Tornou-se cineasta e transformou sua dor e frustração em “joias”, e após sucessivas operações pôde corrigir a ausência de paralelismo entre os olhos. Curiosamente as pessoas não notaram, ou não disseram nada à respeito de sua bem sucedida aquisição. Percebeu então que todo o dano causado pelo sofrimento era essencialmente interno, e a deformação principal estava em seu olhar, na forma como pensava ser vista e como via a si mesma, e não em seu órgão da visão. A mãe da cineasta não conseguia olhar para ela, só podia vê-la no limite de sua própria depressão. Incapaz de estabelecer uma comunicação, não via uma criança, e sim uma falha, talvez uma falha pessoal imbuída de culpa.

          A questão do olhar atravessa frequentemente a clínica, e o paciente nos ensina a importância de ser visto dentro de suas próprias necessidades, demandando um olhar que acolhe e aceita, e ao mesmo tempo espelha o que é visto. Muitas vezes encontro à minha frente um adulto, que trabalha e é relativamente bem sucedido, mas é preciso enxergar um adolescente, uma criança ou até mesmo um bebê, o que não quer dizer que devemos infantilizar o paciente, contudo precisamos buscar uma comunicação genuína com esta parte que não se desenvolveu emocionalmente, e não depende tanto da fala, mas do olhar e da atitude do terapeuta.

         Alguns pacientes são capazes de fazer análises e previsões racionais impressionantes, mas incapazes de dizer do que gostam ou fazer escolhas de forma pessoal. Pouco sabem de si, e procuram estruturar alguma segurança através de uma imagem fixada no olhar do outro. No entanto, este outro pode espelhar um vazio, uma expectativa excessiva, um desejo pessoal ou qualquer outra coisa, que nada diz sobre aquele que é olhado. É por esta razão que o olhar da mãe (biológica ou não) é um elemento fundamental na constituição da personalidade de qualquer um, pois é o primeiro olhar que recebemos, uma comunicação silenciosa e essencial.

Em algum nível, isto acontece com todos, mas alguns têm a força para dizer “não quero isto para mim” ou “isto não tem a ver comigo”, e depois romper com a situação, pois constituíram um senso de existência própria. Outros continuam submissos e impossibilitados de viverem de forma pessoal, sentindo que algo está faltando, ao mesmo tempo em que não têm um norte para seguir.